Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino
de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?
O leitor que responder "não sei" a
todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português
de nenhum concurso oficial. Alias, se isso pode servir de algum consolo à sua
ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu
semelhante e seu irmão.
Porque a verdade é que eu também não sei. Você
dirá, meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é
uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de
trabalho, que é a língua.
Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como
outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se
irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de
Português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não
encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português; acrescentava
que eu produzira uma "página de bom vernáculo, exemplar". Tive
vontade de responder: "Mera coincidência" — mas não o fiz para não
entristecer o homem.
Espero que uma velhice tranqüila - no hospital ou
na cadeia, com seus longos ócios — me permita um dia estudar com toda calma a
nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua
pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso:
pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria
se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar
se o seu marido me descesse a mão?).
Alguém já me escreveu também — que eu sou um
escoteiro ao contrário. "Cada dia você parece que tem de praticar a sua má
ação — contra a língua". Mas acho que isso é exagero.
Como também é exagero saber o que quer dizer
escardinchar. Já estou mais perto dos cinqüenta que dos quarenta; vivo de meu
trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e estou até gordo demais,
pensando em meter um regime no organismo — e nunca soube o que fosse
escardinchar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardinchado ninguém; se
o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.
Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram
o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que
não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses
cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me
cumprimentar.
Por que exigir essas coisas dos candidatos aos
nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa unia série
de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para
"pegar" as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei,
caireta, cairota ou cairiri — e a única utilidade de saber qual a palavra certa
será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos
funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando
palavras cruzadas da "Última Hora" ou lendo o horóscopo e as
histórias em quadrinhos de "O Globo?".
No fundo o que esse tipo de gramático deseja é
tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas
se entendam, ruas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático,
aplica sobre nós, os ignaros.
Mas a mim é que
não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem
antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente — de
Cachoeiro de Itapemirim!
Rio,
novembro, 1951
Texto extraído do livro "Ai de Ti, Copacabana", Editora do Autor -
Rio de Janeiro, 1960, pág. 197.